domingo, 20 de outubro de 2013

Conto"O OUTRO”, de Rubem Fonseca


Eu chegava todo dia no meu escritório às oito e trinta da manhã. 


O carro parava na porta do prédio e eu saltava, andava dez ou quinze passos, e entrava.

Como todo executivo, eu passava as manhãs dando telefonemas  lendo memorandos, ditando cartas à minha secretária e me exasperando com problemas. Quando chegava a hora do almoço, eu havia trabalhado duramente. Mas sempre tinha a impressão de que não havia feito nada de útil.

Almoçava em uma hora, às vezes uma hora e meia, num dos restaurantes das proximidades, e voltava para o escritório. Havia dias em que eu falava mais de cinqüenta vezes ao telefone. As cartas eram tantas que a minha secretária, ou um dos assistentes, assinava por mim. E, sempre, no fim do dia, eu tinha a impressão de que não havia feito tudo o que precisava ser feito. Corria contra o tempo. Quando havia um feriado, no meio da semana, eu me irritava, pois era menos tempo que eu tinha. Levava diariamente trabalho para casa, em casa podia produzir melhor, o telefone não me chamava tanto.
No dia seguinte, na hora do almoço, quando fui dar a caminhada receitada pelo médico, o mesmo sujeito da véspera me fez parar pedindo dinheiro. Era um homem branco, forte, de cabelos castanhos compridos. Dei a ele algum dinheiro e prossegui.

O médico havia dito, com franqueza, que se eu não tomasse cuidado poderia a qualquer momento ter um enfarte. Tomei dois tranquilizantes  naquele dia, mas isso não foi suficiente para me deixar totalmente livre da tensão. À noite não levei trabalho para casa. Mas o tempo não passava. Tentei ler um livro, mas a minha atenção estava em outra parte, no escritório. Liguei a televisão mas não consegui aguentar mais de dez minutos. Voltei da minha caminhada, depois do jantar, e fiquei impaciente sentado numa poltrona, lendo os jornais, irritado.}

Na hora do almoço o mesmo sujeito emparelhou comigo, pedindo dinheiro. "Mas todo dia?", perguntei. "Doutor", ele respondeu, "minha mãe está morrendo, precisando de remédio, não conheço ninguém bom no mundo, só o senhor." Dei a ele cem cruzeiros.

Durante alguns dias o sujeito sumiu. Um dia, na hora do almoço, eu estava caminhando quando ele apareceu subitamente ao meu lado. "Doutor, minha mãe morreu”. Sem parar, e apressando o passo, respondi, "sinto muito". Ele alargou as suas passadas, mantendo-se ao meu lado, e disse "morreu". Tentei me desvencilhar dele e comecei a andar rapidamente, quase correndo. Mas ele correu atrás de mim, dizendo "morreu, morreu, morreu", estendendo os dois braços contraídos numa expectativa de esforço, como se fossem colocar o caixão da mãe sobre as palmas de suas mãos. Afinal, parei ofegante e perguntei, "quanto é?". Por cinco mil cruzeiros ele enterrava a mãe. Não sei por que, tirei um talão de cheques do bolso e fiz ali, em pé na rua, um cheque naquela quantia. Minhas mãos tremiam. "Agora chega!”, eu disse.

No dia seguinte eu não saí para dar a minha volta. Almocei no escritório. Foi um dia terrível, em que tudo dava errado: papéis não foram encontrados nos arquivos, uma importante concorrência foi perdida por diferença mínima; um erro no planejamento financeiro exigiu que novos e complexos cálculos orçamentários tivessem que ser elaborados em regime de urgência. À noite, mesmo com os tranquilizantes, mal consegui dormir.

De manhã fui para o escritório e, de certa forma, as coisas melhoraram um pouco. Ao meio-dia saí para dar a minha volta.

Vi que o sujeito que me pedia dinheiro estava em pé, meio escondido na esquina, me espreitando, esperando eu passar. Dei a volta e caminhei em sentido contrario. Pouco depois ouvi o barulho de saltos de sapatos batendo na calçada como se alguém estivesse correndo atrás de mim. Apressei o passo, sentindo um aperto no coração, era como se eu estivesse sendo perseguido por alguém, um sentimento infantil de medo contra o qual tentei lutar, mas neste instante ele chegou ao meu lado, dizendo, "doutor, doutor". Sem parar, eu perguntei, "agora o quê?". Mantendo-se ao meu lado, ele disse, "doutor, o senhor tem que me ajudar, não tenho ninguém no mundo". Respondi com toda autoridade que pude colocar na voz, "arranje um emprego". Ele disse, "eu não sei fazer nada, o senhor tem que me ajudar". Corríamos pela rua. Eu tinha a impressão de que as pessoas nos observavam com estranheza. "Não tenho que ajudá-lo coisa alguma", respondi. "Tem sim, senão o senhor não sabe o que pode acontecer", e ele me segurou pelo braço e me olhou, e pela primeira vez vi bem como era o seu rosto, cínico e vingativo. Meu coração batia, de nervoso e cansaço. "É a última vez", eu disse, parando e dando dinheiro para ele, não sei quanto.

Mas não foi a última vez. Todos os dias ele surgia, repentinamente  súplice e ameaçador, caminhando ao meu lado, arruinando a minha saúde, dizendo é a última vez doutor, mas nunca era. Minha pressão subiu ainda mais, meu coração explodia só de pensar nele. Eu não queria mais ver aquele sujeito, que culpa eu tinha de ele ser pobre?

A primeira semana foi difícil. Não é simples parar de repente de trabalhar. Eu me senti perdido, sem saber o que fazer. Mas aos poucos fui me acostumando. Meu apetite aumentou. Passei a dormir melhor e a fumar menos. Via televisão, lia, dormia depois do almoço e andava o dobro do que andava antes, sentindo-me ótimo. Eu estava me tornando um homem tranqüilo e pensando seriamente em mudar de vida, parar de trabalhar tanto.

Um dia saí para o meu passeio habitual quando ele, o pedinte, surgiu inesperadamente. Inferno, como foi que ele descobriu o meu endereço? "Doutor, não me abandone!" Sua voz era de mágoa e ressentimento. "Só tenho o senhor no mundo, não faça isso de novo comigo, estou precisando de um dinheiro, esta é a última vez, eu juro!" — e ele encostou o seu corpo bem junto ao meu, enquanto caminhávamos, e eu podia sentir o seu hálito azedo e podre de faminto. Ele era mais alto do que eu, forte e ameaçador.

Fui na direção da minha casa, ele me acompanhando, o rosto fixo virado para o meu, me vigiando curioso, desconfiado, implacável, até que chegamos na minha casa. Eu disse, "espere aqui".

Fechei a porta, fui ao meu quarto. Voltei, abri a porta e ele ao me ver disse "não faça isso, doutor, só tenho o senhor no mundo". Não acabou de falar ou se falou eu não ouvi, com o barulho do tiro. Ele caiu no chão, então vi que era um menino franzino, de espinhas no rosto e de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia esconder


Neste conto, Rubem Fonseca trata da invisibilidade dos membros da classe mais baixa, por meio do personagem que é um mendigo, contrapondo-o com o que seria seu oposto, um homem de negócios. 

O conto é narrado em primeira pessoa, na voz de um personagem que logo será identificado como um executivo. Esse personagem-narrador inicia seu relato contando o percurso que fazia todos os dias, desde a chegada ao trabalho, que era sempre no mesmo horário

“Eu chegava todo dia no meu escritório às oito e trinta da manhã..
.” (Fonseca 2010: 72) –, incluindo o que ele costumava fazer, até 
sua chegada em casa. 

Alienado em seu escritório, expandido para o ambiente onde mora, o resto da cidade não é percebido por ele. Apenas quando o executivo deixa o espaço do seu escritório e passa a frequentar as ruas é que ele se apercebe da existência de um outro lado da cidade bem diferente do que ele habita. Este “novo” lado é representado pela figura do pedinte, que insiste em abordá-lo em busca de ajuda.

As duas primeiras aproximações entre o pedinte e o executivo parecem, para este,apenas um ato casual, de pouca importância. “Uns trocados” poderiam afastar o pedinte de sua vida, imagina o narrador. Mas, ao constatar que a presença do outro tornou-se mais intensa, o executivo se exaspera: “Mas todo dia?” 

De simples mendigo, o outro passa, na concepção do executivo, a invasor. O pedinte invade a vida do rico, trazendo para este todos os problemas de sua vida de miséria: é a mãe doente que precisa de remédios; é a mãe morta que precisa de enterro; e, por fim, é a sua própria pessoa que não tem mais ninguém com quem contar, além do executivo. Neste último ato, o mendigo revela a sua verdadeira intenção: entregar a si próprio para o narrador o sustentar. Mas é neste momento que surge na boca do executivo uma frase lapidar, capaz de decifrar todo o jogo social que marca a cidade fonsequiana: “Eu não queria mais ver aquele sujeito, que culpa eu tinha de ele ser pobre?” 

Culpa é a palavra chave da frase. Para o executivo a pobreza do outro não foi provocada por ele, o que o exime de qualquer dívida com o mendigo. Sem culpa, nada o impede de afastar a figura insistente do outro de sua vida. E para isso, o narrador usa a violência: mata o pedinte na porta de casa, quando este espera mais uma ajuda financeira de sua pessoa.

“O outro” mostra que os ricos, ao se depararem com a presença do indesejável, do outro, vindo da parte da cidade que lhe é estranha, são tão brutais quanto os marginais que procuram tirar dos ricos o que inexiste em suas vidas miseráveis.

De maneira geral, sejam ricos ou pobres,os habitantes da cidade do Rio de Janeiro são hostis uns com os outros e brutais com aqueles a quem julgam seus rivais ou possíveis ameaças a sua existência.



“Tolerar a existência do outro,
E permitir que ele seja diferente, 
Ainda é muito pouco.
Quando se tolera, 
Apenas se concede
E essa não é uma relação de igualdade, 
Mas de superioridade de um sobre o outro.
Deveríamos criar uma relação entre as pessoas,
Da qual estivessem excluídas
A tolerância e a intolerância.”
(José Saramago)  

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