terça-feira, 29 de outubro de 2013

Um olhar sobre as Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis


Ao verme que primeiro roeu 
as frias carnes do meu cadáver 
dedico com saudosa lembrança 
estas memórias póstumas
                                        Brás Cubas

Memórias póstumas de Brás Cubas se enquadra no gênero literário conhecido como sátira menipéia, no qual um morto se dirige aos vivos para criticar a sociedade humana. É exatamente o que faz o narrador, ao contar a história de sua vida após o próprio falecimento. A leitura do romance deve levar em conta a dupla condição do protagonista:
há o Brás vivo e o Brás morto.


Ao criar um narrador que resolve contar sua vida depois 
de morto, Machado de Assis muda radicalmente o panorama da 
literatura brasileira, além de expor de forma irônica os privilégios da 
elite da época.





O romance é a autobiografia 
de Brás Cubas, narrador-personagem
 (1ª pessoa) que, depois de morto, na condição de "defunto-autor", 
resolve escrever suas memórias. Por estar morto, Brás Cubas assume uma posição transtemporal, de quem vê a própria
 existência já de fora dela, "desse outro
 lado do mistério", de modo onisciente, descontínuo e sem a pressa dos vivos.




Brás Cubas é um homem rico e solteiro que, depois de morto, resolve se dedicar à tarefa de narrar sua própria vida. Dessa perspectiva, emite opiniões sem se preocupar com o julgamento que os vivos podem fazer dele. De sua infância, registra apenas o contato com um colega de escola, Quincas Borba, e o comportamento de menino endiabrado, que o fazia maltratar o escravo Prudêncio e atrapalhar os amores adúlteros de uma amiga da família, D. Eusébia. Da juventude, resgata o envolvimento com uma prostituta de luxo, Marcela.  
Depois de retornar de uma temporada de estudos na Europa, vive uma existência de moço rico, despreocupado e fútil. Conhece a filha de D. Eusébia, Eugênia, e a despreza por ser manca. Envolve-se com Virgília, uma namorada da juventude, agora casada com o político Lobo Neves. O adultério dura muitos anos e se desfaz de maneira fria. Brás ainda se aproxima de Nhã Loló, parenta de seu cunhado Cotrim, mas a morte da moça interrompe o projeto de casamento.  
Desse ponto até o fim da vida, Brás se dedica à carreira política, que exerce sem talento, e a ações beneficentes, que pratica sem nenhuma paixão. O balanço final, tão melancólico quanto a própria existência, arremata a narrativa de forma pessimista: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

O Brás vivo é personagem da narrativa e vive uma existência marcada pelas futilidades sociais, pela volubilidade sentimental e pelo desprezo que manifesta pelos outros. O Brás morto é o narrador, que é capaz de expor sem nenhum pudor os próprios defeitos. Em primeiro lugar, porque já está morto e não pode mais ser atingido pela ira de seus contemporâneos. Em segundo, porque a condição em que está lhe dá a sabedoria necessária para perceber que seu modo de agir é semelhante ao de todos os seres humanos.  
A sociedade é caracterizada como o espaço do jogo entre aparência e essência, onde as pessoas interpretam papéis e fingem ser o que realmente não são. A impossibilidade de conhecer as profundezas da alma não impede o narrador de reconhecer a miséria moral da humanidade. 


Viveu diversas aventuras na adolescência, como seu namoro com a espanhola Marcela – mulher que adorava receber joias e outros presentes, tinha vários admiradores e que no final da obra teve um final trágico (primeiro ficou desfigurada por causa de um surto de Bexiga, e depois morreu magra e decrepita na maior miséria). No trecho abaixo veja um pouco da ironia do autor ao lembrar-se da amante:
Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.
Pequena análise composicional

Narrador
A narração é feita em primeira pessoa e postumamente, ou seja, o narrador se autointitula um defunto-autor – um morto que resolveu escrever suas memórias. Assim, temos toda uma vida contada por alguém que não pertence mais ao mundo terrestre. Com esse procedimento, o narrador consegue ficar além de nosso julgamento terreno e, desse modo, pode contar as memórias da forma como melhor lhe convém. 

Foco Narrativo
Com a narração em primeira pessoa, a história é contada partindo de um relato do narrador-observador e protagonista, que conduz o leitor tendo em vista sua visão de mundo, seus sentimentos e o que pensa da vida. Dessa maneira, as memórias de Brás Cubas nos permitirão ter acesso aos bastidores da sociedade carioca do século XIX. 

Tempo
A obra é apoiada em dois tempos. Um é o tempo psicológico, do autor além-túmulo, que, desse modo, pode contar sua vida de maneira arbitrária, com digressões e manipulando os fatos à revelia, sem seguir uma ordem temporal linear. A morte, por exemplo, é contada antes do nascimento e dos fatos da vida.

No tempo cronológico, os acontecimentos obedecem a uma ordem lógica: infância, adolescência, ida para Coimbra, volta ao Brasil e morte. A estranheza da obra começa pelo título, que sugere as memórias narradas por um defunto. O próprio narrador, no início do livro, ressalta sua condição: trata-se de um defunto-autor, e não de um autor defunto. Isso consiste em afirmar seus méritos não como os de um grande escritor que morreu, mas de um morto que é capaz de escrever.

O pacto de verossimilhança sofre um choque aqui, pois os leitores da época, acostumados com a linearidade das obras (início, meio e fim), veem-se obrigados a situar-se nessa incomum situação.

Não-realizações
Publicado em 1881, o livro aborda as experiências de um filho abastado da elite brasileira do século XIX, Brás Cubas. Começa pela sua morte, descreve a cena do enterro, dos delírios antes de morrer, até retornar a sua infância, quando a narrativa segue de forma mais ou menos linear – interrompida apenas por comentários digressivos do narrador. 

O romance não apresenta grandes feitos, não há um acontecimento significativo que se realize por completo. A obra termina, nas palavras do narrador, com um capítulo só de negativas. Brás Cubas não se casa; não consegue concluir o emplasto, medicamento que imaginara criar para conquistar a glória na sociedade; acaba se tornando deputado, mas seu desempenho é medíocre; e não tem filhos.

A força da obra está justamente nessas não-realizações, nesses detalhes. Os leitores ficam sempre à espera do desenlace que a narrativa parece prometer. Ao fim, o que permanece é o vazio da existência do protagonista. É preciso ficar atento para a maneira como os fatos são narrados. Tudo está mediado pela posição de classe do narrador, por sua ideologia. Assim, esse romance poderia ser conceituado como a história dos caprichos da elite brasileira do século XIX e seus desdobramentos, contexto do qual Brás Cubas é, metonimicamente, um representante.


"Memórias Póstumas de Brás Cubas" é uma obra que revolucionou o romance brasileiro. De cunho realista, mas sem ter as características da crítica agressiva de outros escritores do Realismo (como Eça de Queirós em Portugal), a força da obra de Machado de Assis está na crítica sutil e na grande inteligência do autor. Ao contrário do já citado escritor português Eça de Queirós, que batia de frente com a burguesia, em Memórias Póstumas a crítica é feita focando a burguesia por dentro, ou seja, o escritor parte de um ponto de vista mais psicológico. Através disso, consegue-se fazer um combate ao Romantismo em sua essência através de personagens verossímeis que cabe ao leitor julgar e colocando-se em reflexão, por exemplo, a questão da ociosidade burguesa.

Machado de Assis, nesta obra, revolucionou o formato do romance através da subversão de padrões do Romantismo. Se no romance é de praxe escrever uma dedicatória, por exemplo, ele o faz a um verme; ao verme que o corroeu. Outro ponto que pode ser citado como exemplo é a quantidade de capítulos do livro. Se era comum ter cerca de trinta capítulos em um romance, Machado de Assis faz um livro que ultrapassa cem capítulos. Porém, alguns deles são extremamente curtos ou são vazios. O aluno deve, então, ficar atento a estes aspectos formais e em como se faz uma crítica social na obra.

Machado de Assis é, sem dúvida, um dos maiores
 nomes da literatura brasileira. Seus contos e livros lhe renderam
 grande fama ainda em vida, mas talvez nós ainda não tenhamos uma
 verdadeira dimensão da profundidade do seu 
trabalho e de seu pensamento.


Tutora
Maria Rosa

Um comentário:

Unknown disse...

Arrasou!
Muito bom!
Bjs